Obra de juiz do TRT5 é objeto de pesquisa de doutorado na Argentina

 

O professor José augusto Rodrigues Pinto (foto), juiz aposentado do TRT5 recentemente homenageado com a nomeação do fórum da Justiça do Trabalho em Bom Jesus da Lapa (veja abaixo a transcrição do elogiado discurso do magistrado na cerimônia de inauguração), terá a sua obra examinada na pesquisa de doutorado que o professor Paulo Messias de Melo, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), realiza para a Universidade de Buenos Aires (Argentina).

 

"O professor Rodrigues Pinto é um dos fundadores da Faculdade de Direito da Bahia e a sua obra é objeto de grande interesse. O seu posicionamento sobre a execução trabalhista chega a ser uma unanimidade no Brasil, tanto entre a magistratura quanto no mundo acadêmico", afirma Melo. Ele cita a opinião do ministro aposentado do TST Arnaldo Sussekind, para quem Rodrigues Pinto é uma das maiores autoridades em execução no Brasil.

 

Ainda de acordo com Paulo de Melo, esta é a primeira vez que alguém escreve uma tese sobre a figura de um jurista vivo. Para ele, contribui decisivamente para a pesquisa o fato de Rodrigues Pinto ser um homem acessível, que tem prazer em dividir o conhecimento com quem o procura.


 
"ORAÇÃO DE AGRADECIMENTO NA INAUGURAÇÃO DO
FORUM PROFESSOR RODRIGUES PINTO
BOM JESUS DA LAPA - BAHIA


JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO


 
Faz muito tempo, num pequeno livro que tratava da vida depois da morte, eu li que no transcendental instante da transposição de plano existencial, num último lampejo de consciência, o homem revê como um filme cena por cena do que fez na Terra.

 

No momento em que a generosidade do meu tribunal e de seus pares, com o testemunho dos meus leais amigos, enche de luzes o meu crepúsculo com o carinho desta homenagem, minha consciência repassa, como um "trailer" desse filme, todas as cenas de minhas opções de vida, procurando perceber o sentido e entender o motivo de tão significativa honraria.  


 
A primeira cena projetada mostra o dia em que, ainda adolescente, deixei minha casa, manhã cedinho, para inscrever-me no vestibular de engenharia civil na Escola Politécnica da Bahia, e voltei ao meio dia inscrito no vestibular de direito da histórica Faculdade Livre, para surpresa de minha mãe que me aguardava ansiosa.

 

Assim foi feita minha primeira opção de vida. Teria ela sido um típico impulso juvenil, merecedor do estigma da inconsequência e da insensatez?

 

Agora, sessenta anos depois, vejo com absoluta clareza que apenas tomei a intuitiva decisão de um jovem que emergia do tenebroso abismo do maior conflito armado até então visto, aflito por trocar, com o amadurecimento precoce que a visão do sofrimento lhe impunha, um pesadelo real de tresloucada selvageria por um sonho de justiça social, que tem no direito seu único canal de realização.

 

Fico à vontade, portanto, para condensar a causa desta primeira opção de vida numa paráfrase do pensamento político de Winston Churchill sobre a Democracia: "O Direito é o pior dos sistemas de convivência social, excluídos todos os demais."

 

A segunda cena do "trailer" que me chega à memória mostra o dia em que, perto de completar quinze anos de advocacia, justamente quando consolidava meu êxito no campo então novo e economicamente promissor da consultoria de empresas, resolvi ingressar na magistratura trabalhista, exatamente quando era tratada pelos pejorativos apelidos de "justiça dos pobres" e "justiça de segunda classe".

 

Nesta troca da refulgência pública da defesa da justiça nas tribunas pretorianas pelo poder obscuro de distribuir a justiça no recato dos gabinetes, eu estava fazendo minha segunda opção de vida.

 

Honrando-a, procurei imbuir-me da compreensão das duras realidades que se oferecem a um verdadeiro juiz: a renúncia à riqueza pela profissão, o equilíbrio do poder legal com a humildade da conduta pessoal, o ascetismo do comportamento social, o esforço para chegar ao saber sem ser um sábio, a percepção de estar sendo julgado cada vez que julga.

 

Com essas certezas, enquanto magistrado, meu maior zelo foi com o enquadramento da minha imagem na magistral moldura de Piero Calamandrei  em seu livro "Eles, os juízes vistos por nós, os advogados":

 

"Em certas cidades da Holanda, os lapidadores de pedras preciosas vivem em obscuras oficinas, ocupados todo o dia a pesar, em balanças de precisão, pedras tão raras, que bastaria uma só para os tirar da miséria. À noite, quando as entregam, faiscantes à força de polimento, a quem  ansiosamente as espera, preparam serenamente, sobre aquela mesma mesa onde pesaram os tesouros alheios, a sua ceia frugal e partem sem inveja, com as mãos que lapidaram os diamantes dos ricos, o pão de sua honesta pobreza. O juiz também vive assim."

 

Enquanto fui juiz, foi assim que vivi, e disso fiz minha segunda opção de vida.


 
A terceira cena deste "trailer" me transporta ao dia em que, completados exatos trinta anos de serviço público, me aposentei no cargo de magistrado trabalhista, a fim de ficar inteiramente livre para o exercício intensivo do magistério jurídico a que me habilitara em concurso na mesma velha e querida Faculdade Livre de Direito que me diplomou.

 

Houve uma razão de ser nesta atitude, à época despercebida até pelos entes tão queridos como minha própria esposa que, de quando em quando, ainda lembra lastimosa: "Aposentando-se tão moço, você sepultou uma carreira que poderia tê-lo levado até o Tribunal Superior do Trabalho."

 

Poderia, sim. Porém, eu estava fazendo uma opção pela garimpagem anônima, na ganga bruta das inteligências medianas, de diamantes do talento jurídico nos quais pudesse despertar, com o estimulo da primeira lapidação, o amor pelo aprimoramento científico e o interesse pelo progresso sustentável da cultura.

 

Para agir assim, tocou minha sensibilidade a comparação que José Martins Catharino fizera da importância da continuidade na prospecção do direito com a das corridas de revezamento em que, de tempos em tempos, o bastão precisa ser passado pela geração que conclui seu percurso às mãos dos que tenham condições de não o deixar cair no percurso seguinte.

 

Foi minha opção assumir plenamente essa responsabilidade ao longo de trinta anos, e de modo algum me arrependo do que eventualmente sacrifiquei por causa dela.

 

Ao contrário, reconforta-me e até me envaidece ter contribuído, por mais palidamente que fosse, para manter abertas as portas da "Escola Baiana de Direito do Trabalho", inaugurada nos anos 40 do século XX pelo pioneirismo de Orlando Gomes e seus discípulos, para cujo rejuvenescimento contribui com o brilho de valores que garimpei anonimamente, mas só poderia lapidar com a ferramenta que representa a quarta cena deste "trailer" de minha vida: o livro, que "caindo n´alma, é gérmen  -  que faz a palma,  é chuva - que faz o mar", como  intuiu a genialidade imortal de Castro Alves.

 

O conhecimento, portentoso como o de Rui Barbosa, ou insignificante como o meu, é riqueza para não se entesourar e sim distribuir. Entesourado, perde-se na morte. Distribuído, perpetua-se na vida.

 

Os longos anos de leituras e reflexões que a função de magistrado me cobrou sem hiatos para poder decidir conscienciosamente sobre a vida dos meus semelhantes, e que a função de preceptor me exigiu renovar sem esmorecimentos para formar a opinião dos discentes, impuseram-me a deliberação de sistematizar em livros o pouco que conhecia sobre Direito e Processo do Trabalho, de modo a estender minha participação,  ela leitura, ao aprendizado daqueles que não teriam  acesso às audiências ou salas de aula.

 

Por isso, escrevi livros com o mesmo amor com que geraria filhos biológicos que o destino se esqueceu de me dar.

 

Fiz questão de proclamar esta verdade no prefácio de um deles:

 

"Os livros, como acontece com os filhos do homem, por mais que se repitam, nunca serão iguais. Há neles uma espécie de código genético, formado por método, estilo e objetivo. Esse código genético lhes dá identidade própria, mesmo sendo única a substância da matéria que versam."

 

 E concluí:

 

"Seja lembrado, por fim, que os livros, como os filhos do homem, são sempre muito queridos por seu autor, na medida em que tornam vivos o sonho, o amor e o esforço com que são agregados à sociedade em que convive."


 
O gene fundamental que me empenhei em transmitir-lhes, pois considero o mais importante de minha própria natureza, foi o da simplicidade e honestidade do pensamento, uma vez que vejo na ciência um caminho para compreender a vida, nunca um meio de a tornar um enigma.

 

Em nenhum instante procurei fazer deles um espelho de minha luz. Tudo que desejei e desejo do fundo da minha penumbra,  é vê-los cumprir o destino que sonhei para eles, como o poeta sonhou para seus versos:

 

"Ganha o mundo, meu livro, a glória te pertence.
Arrebata-a contigo, e vence o olvido e vence
O peso esmagador da própria eternidade.

 

Mas, se alguem perguntar por mim: "E ele, quem era?"
Responde-lhe: "Não sei. Talvez uma quimera,
O fantasma da dor, a sombra da saudade..."


O "trailer" desse meu filme chega, enfim, à cena que se passa aqui e agora, ao vivo, a da homenagem que recebo. Cena importantíssima, que proporciona a resposta a uma pergunta que me palpita n´alma  e inspira  uma reflexão sugerida pela cidade eleita para embalar-me em seu regaço.

 

A pergunta, que ansioso me repito, desde quando soube da outorga do meu nome à nova sede da Justiça do Trabalho de 1ª instância em Bom Jesus da Lapa, é esta: A honraria, que enche de luz o meu ocaso, como já fiz questão de dizer, é motivada e justa?

 

Além da imensa e irretribuível grandeza de coração dos que decidiram promove-la e compartilha-la, eu consigo ver muito nítido seu motivo. Ela quis premiar a opção de construir idéias em vez de monumentos, de ser lapidador em vez de joalheiro, de ser garimpeiro em vez de mercador, de semear em vez de colher.

 

Desse modo, afora minha própria dúvida de ter cumprido as opções feitas com todo o empenho e na máxima extensão possível, considero-a justa, imodéstia à parte.  E, exatamente por causa da dúvida, recebo-a com a humildade do sentimento de que, se acertei em alguma coisa, só a humana falibilidade me impediu de acertar muito mais.

 

A reflexão é sobre o significativo e indissolúvel vínculo espiritual que, daqui por diante, passa a unir-me a Bom Jesus da Lapa, um místico rincão da Bahia, aonde se encontram sempre, vindos de todas as partes do Brasil, o sofrimento e a fé, para buscarem juntos o lenitivo das dores físicas e morais.

 

 Considero uma graça especial que, nesta abençoada terra, meu nome esteja velando precisamente por uma Casa sempre aberta aos desvalidos que suplicam pelo bálsamo redentor da justiça. Que melhor nicho eu almejaria para acalentar minhas velhas opções de vida? 

 

O final do "trailer" é uma cena de gratidão, mas também um pouco de despedida.  Sentindo nele o travo agridoce da saudade, valorizo-o evocando cena muito parecida de que participei com intensa emoção, a do agradecimento de Orlando Gomes na cerimônia de descerramento da placa memorativa do seu jubileu de ouro na cátedra da Faculdade de Direito que tanto estremeceu.

 

Porque não a esqueço nunca, faço minhas as palavras que ele resumiu num sugestivo título "Sans Adieu" quando disse aos magistrados, procuradores, professores, advogados, todos ou quase todos seus ex-alunos, que o aplaudiam por simplesmente existir: 

 

"Ratificando a minha gratidão, digo em verdade que meus braços continuam abertos para estreita-los a todos contra o meu coração, hoje pulsando de uma alegria vibrante e inexprimível. E agora deixo de lado o protocolo para lhes dizer: vocês enfeitaram como um raio de sol do outono a vida de um velho mestre, mas não, por favor, não me digam adeus!"

 

Ascom 23.10.2009