Para professor da Unicamp, JT é a expressão da tensão social de hoje

Os magistrados devem pensar o trabalho não apenas sob o ponto de vista jurídico e legal, mas também por seu lado social − e a Justiça do Trabalho é expressão dessa tensão social. Essa é uma das propostas do sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, professor titular da Unicamp, que vem cumprindo, nos últimos anos, junto a juízes do trabalho recém-chegados à magistratura, o papel de provocador. Ele falou aos novos juízes sobre o panorama "rico, denso, complexo e qualificado, cheio de significados e ressignificados", do mundo do trabalho em escala global. "Eu puxo o debate para um tema que não é comum nos cursos de Direito: a substância, a conformação social do cenário do trabalho hoje", explicou ele ao participar de mesa-redonda para um grupo de 51 novos juízes, nesta quinta-feira, dia 14, em Brasília.


Autor de diversos livros de sociologia voltados para a análise da questão do trabalho, Antunes cunhou a expressão que acabou adotada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat) como uma de suas disciplinas: "Novas Morfologias do Trabalho". Para o professor, ao contrário do que se previa há alguns anos, não ocorreu o "fim do trabalho". A empresa moderna amplifica o parque industrial, mas reduz o trabalho vivo, que passa a ser polivalente, multifuncional.


O trabalhador vive rotinas estressantes por ficar ligado e disponível o tempo todo. Esta nova configuração é tema do último livro de Antunes, "Infoproletários - Degradação Real do Trabalho Virtual". Mesmo nos setores de tecnologia da informação, ele observa uma combinação paradoxal entre o maquinário altamente qualificado e condições intelectuais razoáveis, e condições de trabalho que remontam aos séculos XIX e XX: jornadas extenuantes, metas quase irrealizáveis, até mesmo controle de necessidades fisiológicas. "É por isso que vimos na semana passada a 24ª morte por suicídio na France Telecom em 18 meses. Não é o admirável mundo novo: é o abominável mundo novo do trabalho."


Em sua exposição, Antunes fez um desenho comparativo entre o mundo produtivo nas primeiras décadas do século XX e nas últimas três décadas e meia. Ele suscitou reflexões sobre as novas formas de trabalho e os desafios que trazem para a legislação social e o Direito do Trabalho e para a Justiça do Trabalho, nos julgamentos dos conflitos entre o capital e trabalho - do modelo taylorista-fordista aos "infoproletários", passando pelas profundas mudanças na geopolítica e na economia mundiais, com a financeirização da economia e a mundialização dos capitais. "Nos anos 70, a China era um país de economia fechada que se recusava ao diálogo com o capitalismo. A mudança é de tal envergadura que hoje o mundo capitalista depende da China", assinalou.


O modelo taylorista-fordista foi marcado por uma disjunção entre os gestores científicos - administradores e engenheiros que concebiam o fluxo produtivo - e a massa de trabalhadores manuais responsável pela execução - os "gorilas amestrados", na definição de Frederick Taylor − e pela produção em série e o trabalho fragmentado. "Esse modelo se expandiu para todo o mundo e penetrou, como diz Lukács, a subjetividade mais profunda do trabalhador", explica o sociólogo. Paralelamente, o trabalho nessas circunstâncias era razoavelmente regulamentado e provido de direitos - em decorrência das lutas da classe trabalhadora ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX.


Placas tectônicas  − Apesar de manifestar certo desalento com o cenário atual, Ricardo Antunes se diz otimista quanto a possíveis saídas. "Há resistências, há lutas sociais", afirma, citando movimentos na França, na China (lá, uma microrrebelião numa empresa envolve milhares de trabalhadores), na Bolívia, Venezuela e Equador. "As placas tectônicas se movimentam, e a Justiça do Trabalho não é uma expressão epifenomênica do que ocorre no mundo do trabalho: ela é expressão dessa própria tensão social." Nesse cenário, o sociólogo entende que a Justiça do Trabalho tem de dizer "se é favorável ao mundo da empresa que destrói o trabalho ou ao mundo do trabalho que preserva a dimensão humana". Para Antunes, "este é o imperativo do século XXI, que nos obriga - sociólogos, economistas, juízes - a olhar e ver que a corrosão social é profunda, e o que podemos fazer em relação a isso."


Fonte: Enamat − 16.10.2009