Trabalho Infantil Doméstico, uma realidade da transição pós-moderna

Autora: Cíntia Vital da Silva Pereira, graduanda em Direito da Unijorge. Este ensaio foi selecionado pela professora Maria Eunice Borja, de Sociologia do Direito, para apresentação na Semana Jurídica daquela universidade.

 

O programa da modernidade iniciado em meados do século XVI funda-se no equilíbrio entre os pilares da regulação e da emancipação e é assegurado pela correlação existente entre os princípios regulatórios e as lógicas emancipatórias. Assim, a racionalidade moral-prática, que rege o direito, deve harmonizar-se com o princípio do Estado, uma vez que o Estado moderno detém a primazia na produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade cognitivo-instrumental alinha-se ao princípio do mercado, visto que a ciência e a técnica afiguram-se como as molas mestras do imensurável desenvolvimento do modo de produção capitalista, o qual contribuiu para uma maior inserção da criança no mercado de trabalho.


A origem do trabalho infantil remonta a cerca de 2000 anos antes de Cristo, vez que o Código de Hamurabi já apresentava medidas de proteção à criança. Com o advento da Revolução Industrial e das lutas de classes no final do século XVIII, uma das primeiras leis editadas na Inglaterra regulava exatamente a jornada de trabalho do menor. Naquela época, intensificou-se a exploração das meias forças, isto é, do menor e da mulher. No entanto, pode-se perceber que hodiernamente a situação não é muito diferente. Apesar de toda a legislação protetora do menor, este ainda é explorado, muitas vezes em situações degradantes, penosas, insalubres e perigosas.


A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil doméstico como a situação em que as crianças são empregadas para executar tarefas domésticas exploratórias, em residência de terceiro ou empregador. Sempre que tal exploração é extrema, é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. A lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, em seu artigo primeiro, dispõe que é considerado doméstico aquele empregado que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa a pessoa ou a família no âmbito residencial destas. Considerando que trabalhador infantil é aquele que ainda não completou dezesseis anos, em afronta à garantia constitucional da idade mínima (art. 7º , XXXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil), pode-se conceituar o trabalho infantil doméstico como aquele prestado por pessoa menor de dezesseis anos à pessoa ou família, no âmbito residencial, de natureza contínua e de finalidade não lucrativa.


Em geral, muitas dessas meninas (basicamente são elas as exploradas neste tipo de trabalho) são trazidas do interior para as grandes cidades devido à fome e à miséria das famílias. Ao chegarem, muitas trabalham até por um prato de comida. As causas desse trabalho são sempre as mesmas: miséria, baixa escolaridade dos pais (a grande maioria das mães também desenvolve atividades relacionadas ao trabalho doméstico), tratamento indiferente daqueles que consideram a situação normal e legal (propalam a máxima inaplicável ao caso de que ¿é melhor trabalhar do que ir para a rua¿), além da impossibilidade de fiscalização, vez que a infração se dá dentro de casa, asilo inviolável na forma do inciso XI, do artigo 5º, da Constituição Federal. Nesta atividade acontece um tipo de exploração que não se vê, ou não se considera, por se tratar, para muitos, de uma atividade tradicional. A exploração da mão de obra dessas meninas acontece nos lares de classe média e de alta renda, que são os grandes empregadores. Além da inviabilidade de fiscalização, muitas crianças e adolescentes estão em situação ¿regular¿ em algumas residências, vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a guarda temporária (arts. 33 e seguintes), destinada a regularizar a posse de fato (tutela e adoção), facilitando a ocultação da exploração dos trabalhadores infantis domésticos.

 

Situações de maus tratos, discriminação racial, violência e abuso sexual são reveladas nas pesquisas, especialmente entre as crianças que dormem no local de trabalho. Há significativos insultos verbais, coerção no sentido de exigir que o trabalho seja feito mesmo quando as crianças trabalhadoras estão doentes, fornecimento de alimentação insuficiente e inadequada, entre outros. (BOAS práticas no Combate ao Trabalho Infantil: 0s 10 anos do Ipec no Brasil. Revista da Organização Internacional do Trabalho, Brasília: OIT, p. 262, 2003).

 

Durante a execução das tarefas domésticas, a criança que não possui discernimento suficiente para identificar situações de risco ou perigosas, pode sofrer acidentes com produtos químicos e inflamáveis, bem como queimaduras ao manusear o fogão; ao lidar com aparelhos elétricos, pode provocar choques por mau funcionamento.


Diversos fatores da transição pós-moderna influenciaram o acirramento do trabalho doméstico dessas crianças, desde o surgimento do capitalismo liberal no século XIX, marcado pelo aumento do princípio do mercado com o surto vertiginoso da industrialização ¿ princípio do laissez faire (mercado livre), até a fase do capitalismo financeiro (capitalismo desorganizado), iniciado na década de sessenta e caracterizado no plano econômico pelo crescimento explosivo do mercado mundial. É neste período do capitalismo que o princípio do mercado assume proporções ilimitadas, impulsionado pelas empresas multinacionais. A regulação dos conflitos entre capital e trabalho, estabelecidos a nível nacional no período anterior (capitalismo organizado) enfraquecem, e a relação salarial torna-se mais precária, representando um certo retrocesso em relação ao período do capitalismo liberal. O princípio da comunidade atravessa transformações semelhantes na terceira fase do capitalismo  (capitalismo financeiro) e as classes trabalhadoras se tornam cada vez mais estratificadas.

 

Consequentemente, a criança é cada vez mais inserida no mercado de trabalho, pois os baixos salários e o desemprego faz com que os rendimentos da família não sejam suficientes para mantê-la. Por não poderem sustentar todos os membros da família, muitas vezes as crianças são doadas a terceiros, pois já que não é possível aumentar a renda, que pelo menos a despesa seja diminuída.


Com a emergência do estado liberal, verifica-se a liberalização dos mercados, a estabilidade monetária, o controle das contas públicas, o corte das despesas sociais e a política de privatizações. O fenômeno da globalização promove, gradualmente, a retração da soberania estatal, com a intensificação da interdependência das economias nacionais em escala internacional. As principais críticas a atual doutrina do neoliberalismo são ditas em vários planos. Primeiramente no econômico, vive-se a etapa conhecida como monopolista, marcada pela ação de grandes conglomerados empresariais. Pelas teorias neoliberais econômicas sabe-se que somente as grandes empresas sobrevivem ao mercado. Além disso ocorreu, e ainda ocorre, o aumento da questão social, ou seja, a elevação dos índices de desemprego e pobreza das nações ricas, sem contar com as crises em países periféricos, graças à má distribuição de renda.


O cumprimento excessivo da racionalidade cognitivo-instrumental do pilar da emancipação fez com que a modernização científico-tecnológica do pilar da emancipação se alastrasse até hoje, gerando o agravamento da injustiça social, através do crescimento sem limites da concentração de riqueza e da exclusão social, tanto a nível nacional, como mundial.


Quando um país adota o conceito de idade mínima para práticas laborais, reconhece que abaixo dessa idade a criança precisa estar na escola, preparando-se para a vida profissional. Reconhecidamente um pré-requisito para quebrar o ciclo da pobreza e construir um futuro mais seguro, nem sempre a criança envolvida com trabalho doméstico vai ter acesso a qualquer forma de educação, ou porque deixou a escola cedo demais, ou porque nunca chegou a freqüentá-la. Para as meninas que trabalham como domésticas e já atingiram a idade mínima de 16 anos, são garantidos os mesmos direitos trabalhistas das empregadas domésticas adultas. Sua Carteira de Trabalho e Previdência Social deve ser anotada e lhes são assegurados os direitos previstos no art. 7º, parágrafo único, da Constituição Federal.


As crianças envolvidas no trabalho doméstico são suscetíveis de danos físicos e psicológicos por causa da idade e das condições de trabalho, implicando em fragilidade de sua saúde. Carregar baldes pesados, cheios de líquidos, mover a mobília para limpar, são atividades para as quais as forças próprias da idade estão aquém das necessárias para executá-las.  O próprio fardo de trabalhar horas a fio, na mais tenra idade, ou de trabalhar sem intervalo para descansos causa fadiga na criança, o que a deixa mais propensa a acidentes, mesmo que a tarefa não seja perigosa. Além do risco da atividade doméstica, a saúde dos menores ainda é posta em perigo quando estes não recebem a alimentação adequada, contendo todos os nutrientes necessários ao seu desenvolvimento.

 

A saúde psicológica das crianças também sofre dano na situação de exploração do trabalho doméstico. Porque sofre maus-tratos ou porque é ridicularizada e tratada como inferior pelos donos da casa, a auto-estima da criança é diminuída e acaba por sentir-se desamparada e dependente.
Uma conseqüência tão grave quanto as outras, e que geralmente não é considerada como deveria, é a de que é negado à criança o direito de ser criança. Inclui-se o direito de conviver com outras crianças de sua idade e de brincar. Além de não terem permissão para brincar, ainda sofrem ao verem as crianças que moram na mesma casa brincando e não podem fazê-lo; levam-nas ao parque e não podem se divertir junto com elas; não podem assistir ao mesmo programa de televisão. São levadas a pensar que são diferentes das outras, que não têm os mesmos direitos.

 


Alguns empregadores domésticos tratam as crianças como escravas, inclusive confinando-as na casa, não permitindo que estas saiam quando eles viajam. Há registros de crianças cuja circulação dentro de casa se restringe a um único cômodo (geralmente cozinha, onde dormem) e a sua passagem para a sala somente é permitida antes que a família acorde ou depois que todos dormem. Apesar de não ser o único tom indicativo de escravidão, a restrição da liberdade é um forte indício de que tal prática esteja ocorrendo.

 


Ao nível da racionalidade moral-prática do capitalismo financeiro, pode-se observar alguns dilemas como o fato da regulamentação jurídica da vida social alimentar-se de si própria, ao mesmo tempo em que o cidadão, esmagado por um conhecimento jurídico especializado e hermético, é levado a dispensar o seu bom senso. A modernidade gerou uma ética individualista, uma micro-ética que impede a sociedade de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades por acontecimentos globais, em que todos, mas ninguém individualmente,  parece poder ser responsabilizado. Entretanto, não basta que a lei exista somente. Ela deve ser posta em prática e seu cumprimento deve ser fiscalizado, não apenas por quem tem o dever de fazê-lo, mas por toda a sociedade civil, inclusive denunciando situações de exploração do trabalho de crianças em residências.

 

O projeto da modernidade não cumpriu a totalidade de suas promessas, desnaturando-se no decorrer de seu transcurso histórico, pois a ênfase desmesurada concedida ao mercado e a hipertrofia da racionalidade técnico-científica acabaram inviabilizando a realização plena do ideário moderno. No que tange à exploração do trabalho infantil, faz-se mister que a raiz do problema, a pobreza, seja atacada em primeiro lugar. Programas de geração de renda, criação de cooperativas, treinamento para aprendizagem de uma atividade geradora de renda, apoio a pequenos empreendimentos, treinamento em economia doméstica estão entre as sugestões.


O acesso à educação e à cultura são elementos vitais para uma prevenção mais ampla do trabalho infantil. As crianças em idade escolar devem estar na escola sempre que possível, e esta é uma obrigação do governo. Onde não possa chegar educação formal, que chegue a informal, através de ONGs ou de empresas. Quanto à eliminação do trabalho infantil doméstico, tem-se como principal alicerce as Convenções nº 138 e nº 182 (e Recomendações nº 146 e nº 190, respectivamente), da OIT. Os governos devem se reportar à OIT acerca da implementação das convenções; as organizações de empregadores e trabalhadores também se reportam, mas para o Comitê de Peritos.


Enfim, para que a erradicação do trabalho doméstico infantil seja exitosa, deve-se exterminar aqueles que arregimentam as crianças. Um minucioso trabalho de pesquisa deve ser iniciado para identificar todos os participantes desta prática tão nociva à sociedade, sejam os empregadores, os negociantes, os seqüestradores de menores para o tráfico. A OIT está defendendo que o trabalho desenvolvido por menores em residências seja considerado trabalho infantil sujeito às mais torpes explorações e que deve ser combatido da maneira mais severa, em todos os níveis.

 

Referências

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